Em abril de 1964, cursava eu o
quinto ano da faculdade medicina da UFRGS-POA, trabalhava na clínica Pinel à
noite como auxiliar psiquiátrica, que hoje sei ser o trabalho mais difícil
dentro da psiquiatria e psicanálise. Mesmo assim, tinha tempo de ser filiada ao
PCB. Até fui secretária na FEURGS, Federação dos estudantes da URGS, do Marco
Aurélio Garcia, que veio a trabalhar com Lula e agora sumiu. Ele era da AP
(ação popular).
Bem, fazia eu parte da
"célula" do partido da UFRGS, éramos um grupo de amigos de várias
faculdades. De vez em quando, havia cursos, até com o Leandro Konder. Gente
fina. Havia treinamentos, eu exercia no quadro a função de Agit-Prop, isto é o
seguinte: os americanos estão usando muito essa função no oriente. Largam um cara
orientado pela CIA para fazer "movimento" onde haja alguma rusga. Eu
faço isso até hoje no Banco onde tiro dinheiro, com meus colegas velhos. Muito
divertido.
Bem, como se faz: Por exemplo, um
cara ou dois se revoltam com o preço das Barcas, daí estou eu fina e bela no
meio, armo o maior barraco, junto um monte de gente e saio fina e bela falando
baixinho, bancando a chique que não gosta de turbulência. Depois, saio de taxi,
dando gargalhadas. É bom para o fígado. Os americanos da CIA estão fazendo isso
em todo oriente para mudar os títeres de suas colônias petrolíferas.
Voltando a abril de 1964. Recebo
um carta do exército me convocando para um IPM (inquérito policial militar),
tal dia e tal hora, com 3 Generais e 3 professores, em alguma sala da Faculdade
de Medicina. Havia a possibilidade de expulsão. Havia dedos duro na Faculdade e
no grupo de análise. Foi muito chato. Cheguei linda, bela, alta e loira na hora
marcada. Estavam os "heróis" sentados quando entrei na sala. A sétima
cadeira na ponta da mesa estava me esperando.
EU- Bom dia Senhores. Recebi uma
carta.
GENERAL 1-Pode sentar aí na minha
frente (na outra ponta da mesa). Os Professores me olharam com pena, gostavam
de mim. Sentei e disse: Bem General, estou à sua disposição.
GENERAL 2- Há uma série de acusações contra a
Senhora...
EU- Sim, General...
GENERAL 1- A Senhora participou
de uma reunião com o Amaral. (O Amaral era meu amigo e era do grupo)
EU- General, eu fui ao meu
Dentista que trabalha em uma sala ao lado da casa do Amaral. O Senhor tem razão,
devo ter sido vista por lá.
GENERAL 3- A Senhora tem sido
vista em companhia do K (amigo meu conhecido como comunista e que agora virou a
casaca).
EU- Com certeza General, eu saio
com todos os meus colegas, o Senhor não deve saber, mas aqui na faculdade são
mais de 550 homens e 50 mulheres. Os meninos me adoram. Vou até para o meio da
Rua da Praia com eles, eu saio até com o fulano (quem me dedurou).
GENERAL 3- Mas a Senhora foi
vista, numa sala onde o Leandro Konder dava um curso, à noite.
EU- Quem é este Senhor? Curso de
que? Não conheço. (Cá entre nós, os Generais sabiam da vida de todo mundo desde
que entramos na faculdade, o SNI nasceu bem antes do que a gente imagina).
GENERAL3-Leandro Konder é um comunista.
EU- Ah, bem. Mas o que faria eu num
curso de Comunismo, me parece que isto é Filosofia. Eu trabalho com loucos,
General, a noite toda, todas as noites. Eu pago meus livros.
GENERAL 1- Aliás, a Senhora foi
vista na Livraria Vitória, na Praça da Alfândega, que é onde os comunistas
compra livros. Sabiam de tudo!! Os professore sérios. A Livraria deve existir
até hoje, especializada em Marxismo e Leninismo.
EU- Fui sim, tinha lá um livro
muito bom de Medicina Chinesa, comprei. Se quiser lhe conto, o que fazem lá na
China com os loucos. Plantou arroz vai comer, não plantou, não come. Louco ou
não, dane-se. (ele riu). Achei-os duros, mas acho que eles tem uma certa razão.
No Hospício onde trabalho, tem terapia ocupacional, sem trabalho, ninguém se
cura de loucura. Começaram a bufar. Realmente como se aprende coisas em
Hospício bom.
GENERAL 1- (de saco cheio) E a
Senhora foi vista no bonde com um jornal do Partido Comunista de baixo do
braço.
EU-É possível, eu leio tudo.
Noite passada, eu li todo Jubiabá, do Jorge Amado...
GENERAL 2- COMO??? Outro
comunista?
EU- O Jorge Amado é comunista?
Não sabia, gosto muito dele e do Graciliano Ramos também.
GENERAL 1- OUTRO COMUNISTA??
EU- Meu Senhor, o que posso lhe
dizer? Leio Mário Quintana, Gogol, tudo o que cair na minha mão. Passo a noite
acordada e só o Correio do Povo não dá, é muito ruim. Até leio os romances
franceses, russos, para não dormir. Agora o Senhor me diz que os brasileiros
que leio são comunistas? A Cachorra Baleia também? Me desculpe general, mas
estamos aqui há horas e o Senhor ainda não me disse do que estou sendo acusada
(eu ria por dentro, pois sabia onde pegá-los). Aquela clínica Pinel era ótima
mesmo, pois lá me ensinaram psiquiatria, psicanálise e como lidar com os
verdadeiros perseguidores de fora. Silêncio.
GENERAL 3- A Senhora é acusada de
tentar derrubar o Governo João Goulart.
EU- Agora eu estou aliviada,
General. Eu estava almoçando na reitoria com meu amigo Sul Brasil (era chamado
assim), no dia primeiro de abril, quando um colega chegou... Daí, o general se
levantou da cadeira e aos berros, batendo na mesa dizia: Não é primeiro de
abril é 31 de março!!!
EU (calmamente)- General, o que
aconteceu afinal?
GENERAL 3- Foi 31 de março,
derrubamos o Governo João Goulart. Estava furioso, sentou. E eu pensando,
" Viva o DR Freud".
EU- Geneeeeraalllll, o Senhor
está me atribuindo a culpa de um ato que o Senhor e seus amigos cometeram? Não
estou entendendo nada. Aliás, não entendo nada de política, mas o Senhor me
assustou e me acusou de algo que o Senhor e seus amigos fizeram. Não é justo. (ria
por dentro, pois sabia que o calo era o dia primeiro de abril).
GENERAL 1- A Senhora pode ir embora!!
EU- Então, estou livre?
GENERAL 1- Sim, está. (Levantei e saí da sala).
PS: Sul Brasil- Nós estávamos mesmo almoçando na Reitoria no dia primeiro de
abril de 1964, quando alguém do PCB chegou aos berros dizendo que: Nós tínhamos
dado um golpe. Depois, ficamos muito frustrados com a real notícia de que os
militares é que tinham dado o Golpe, sob o nome de Revolução Redentora. A gente
tinha trabalhado, batalhado e estudado muito com Leandro Konder. A partir daí,
é outra história, já que aqui no Rio para onde fugi, ELES me encontraram. Bem,
são outras várias histórias, que aos
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